sexta-feira, 12 de março de 2010

A Energia do Deserto

SÃO PAULO - O Saara pode abrigar um complexo de usinas solares térmicas, que vai transformar o calor do Sol em energia limpa. Mas os críticos dizem que é loucura.

A cada duas semanas, o Sol envia para o nosso planeta um volume de energia maior do que aquele que geramos durante um ano. É uma fonte inesgotável e praticamente inexplorada — pelo menos até agora. Mas se um consórcio de empresas alemãs conseguir fazer sua ideia sair do papel, a construção do maior projeto solar já imaginado poderá começar em breve no deserto do Saara. Quando concluída, a obra vai colher a energia do Sol e transformá-la em eletricidade limpa, que vai abastecer casas e companhias europeias.

A iniciativa, chamada Desertec, nasceu em 2008. Em outubro do ano passado, 20 grandes empresas alemãs formaram um consórcio com o objetivo de financiar o projeto. O grupo vai fornecer 400 bilhões de euros, necessários para construir um conjunto de plantas de energia solar térmica no norte da África. Entre os integrantes estão gigantes da energia, como a E.ON e a RWE, além da Siemens, do Deutsche Bank e da seguradora Munich Re.

O projeto deverá cobrir 15% das necessidades de eletricidade da Europa até 2050, com pico de produção de 100 gigawatts — equivalente a 100 estações de energia abastecidas por carvão. A eletricidade vai chegar ao continente por 20 linhas diretas de alta tensão, que irão manter as perdas de transmissão abaixo de 10%. Elas cruzarão do Marrocos para a Espanha, via Estreito de Gibraltar; da Argélia para a França, pelas Ilhas Baleares; da Tunísia para a Itália; da Grécia para a Líbia; e do Egito para a Turquia, por Chipre.

A Desertec assumiria um dos postos em uma super-rede europeia que inclui energia gerada a partir de turbinas eólicas no mar do Norte; barragens hidrelétricas na Escandinávia; rochas térmicas na Islândia; e biocombustível na Europa Oriental.

Críticos dizem, contudo, que o projeto poderia tornar o fornecimento de energia na Europa refém de países politicamente instáveis. Também acreditam que a África não deveria ser explorada desta forma e que faz mais sentido cobrir os telhados da Europa com painéis fotovoltaicos. Os opositores destacam ainda que falta aos desertos um recurso indispensável para uma usina de energia solar: água. Será a Desertec um modelo de geração de energia para o futuro ou apenas uma ideia politicamente equivocada e um desperdício de dinheiro?

Quanto mais quente, melhor

Ao contrário dos painéis fotovoltaicos, que convertem luz solar em eletricidade, as plantas solares térmicas concentram e retêm o calor do Sol, depois usado para gerar energia como em uma usina convencional. Elas se dividem em quatro tipos (veja infográfico na pág. 44). Três usam espelhos para aquecer óleo, água ou sal fundido, produzindo vapor para girar uma turbina. Outro sistema adota um disco similar a uma antena parabólica de TV, que focaliza o calor em um cilindro fechado. Isso leva o gás no interior dessa câmara a se expandir e a se contrair, movendo um pistão.

No deserto de Mojave, na Califórnia, um sistema interligado de nove usinas solares com canais de espelhos vem gerando até 300 megawatts de energia por mais de duas décadas. Outra usina-piloto, na Espanha, tem 21 000 metros quadrados de espelhos de vidro, que aquecem uma placa de absorção a mais de 1 000° C e geram 1 megawatt.

A energia solar térmica está em alta. Entre as suas vantagens em relação à fotovoltaica está a capacidade de fornecer eletricidade tanto à noite quanto durante o dia. É possível fazer isso armazenando líquido aquecido em um recipiente isolado e liberando-o horas depois. Um complexo com painéis fotovoltaicos exigiria a criação de um novo tipo de bateria de alta capacidade — projeto ainda em estágio inicial de pesquisa. Mas o argumento decisivo é o custo, várias vezes menor que o das células fotovoltaicas.

Como as usinas solares térmicas exigem luz solar direta, em um dia nublado a produção de energia cai a quase zero. Mas a intensidade da luz no Saara compensa essa falha. A cada ano, cada metro quadrado do deserto recebe mais calor do Sol do que seria obtido pela queima de 2 milhões de barris de petróleo. A Desertec calcula que uma área de 600 quilômetros de extensão poderia fornecer toda a eletricidade que o mundo inteiro precisa hoje e que uma região de 250 quilômetros seria mais do que suficiente para abastecer toda a Europa.

O deserto pede água

Como qualquer usina de carvão ou óleo, uma central solar térmica requer grandes quantidades de água para resfriamento. O líquido condensa o vapor depois que ele passa pelas turbinas do gerador, e as perdas pela evaporação são inevitáveis. A usina de canais solares no deserto de Mojave consome cerca de 3 000 litros de água para cada megawatt-hora de energia elétrica que produz, e é provável que outras precisem de quantidades semelhantes. É muita água para se encontrar em um deserto.

Uma fazenda solar subsaariana típica deveria entregar cerca de 120 mil megawatts-hora de eletricidade por ano por quilômetro quadrado. Isso exigiria o consumo de cerca de 350 milhões de litros de água, volume suficiente para inundar a sua área a uma profundidade de 35 centímetros — não muito menos do que seria necessário para irrigar uma plantação de trigo.

Existe água embaixo do Saara. O aquífero gigante Nubian é um dos maiores do mundo, com cerca de 60 000 quilômetros cúbicos de água. Mas se trata de um recurso não renovável formado há milhares de anos, que não será reposto pelas chuvas. A despesa e o esforço necessário para encanar a água são enormes. A Líbia gastou 27 bilhões de dólares nas duas últimas décadas para construir um sistema capaz de fornecer essa água para irrigação. Esses custos tornariam a Desertec inviável economicamente.

Adotar o resfriamento por ar diminuiria a demanda por água em até 90%, mas traria outros problemas. O ar é menos eficiente no resfriamento e, por isso, as instalações necessitariam de mais espaço e mais espelhos, aumentando os custos. David Mills, cuja empresa Ausra, em Palo Alto, Califórnia, quer construir uma central solar térmica resfriada por ar no deserto de Nevada, diz que o resfriamento por ar causa um impacto de 10% em custo ou desempenho. Outra opção seria dessalinizar a água do mar e usá-la.

Oposição no telhado

Parte da oposição à Desertec vem de Hermann Scheer, membro do parlamento alemão responsável por planejar o programa que colocou painéis solares em 100 000 telhados do país. Ele classificou a Desertec como uma distração desnecessária e dispendiosa. Segundo Scheer, a Europa poderia gerar toda a energia solar de que precisa com maior cobertura de painéis fotovoltaicos. “É estranho como até mesmo o Greenpeace ainda não entendeu isso”, diz. “Até que a energia solar do norte da África possa ser fornecida aos preços prometidos pela Desertec, teremos geração de energia solar a um preço sensivelmente inferior em casa.”

Em relação ao investimento inicial, as instalações solares térmicas são claramente as vencedoras. Jeremy Leggett, que dirige a empresa Solar Century, em Londres, diz que os painéis fotovoltaicos custam mais que o dobro. Mas enquanto uma usina de energia solar requer funcionários trabalhando 24 horas, as instalações fotovoltaicas praticamente funcionam sozinhas. Também podem gerar energia no dia em que o primeiro painel for instalado, enquanto os espelhos solares térmicos são inúteis até a usina inteira ficar pronta.

Anthony Patt, do Instituto Internacional para Análise de Sistemas Aplicados, um grupo de pesquisas da Áustria, está conduzindo um estudo de viabilidade detalhado da geração de energia solar térmica. Ele avalia que é improvável que a Desertec seja competitiva com a geração de energia por carvão por pelo menos duas décadas, período em que ela vai consumir entre 20 e 50 bilhões de euros. O valor é semelhante em escala ao subsídio que a Alemanha deve dar para as células fotovoltaicas no mesmo período.

Instabilidade saariana

Um plano que irá explorar a África, e possivelmente a Ásia, para gerar eletricidade para a Europa não pode deixar de lado as questões políticas. A Desertec diz que dois terços do potencial solar do Norte da África e do Oriente Médio residem na Argélia, Líbia e Arábia Saudita. A Europa, como os Estados Unidos, pretende reduzir sua dependência de energia importada — especialmente petróleo da Arábia Saudita, Irã e Iraque — diante de um futuro político imprevisível. Por que arriscar ficar refém da sorte?

Ifeanyi Amajuoyi, que dirige a empresa nigeriana de energia renovável Nkubadorf, criou a organização Desertec-África para promover a causa da exploração do Sol na região em benefício dos africanos. Ele pretende liderar uma campanha para que os governos da África garantam que a energia da Desertec permaneça no continente.

Embora os obstáculos técnicos e políticos que a Desertec enfrenta sejam consideráveis, a recompensa pode ser enorme se funcionar. Ela irá elevar as energias renováveis ao status de fornecedores dominantes para a Europa, e ajudar a tornar os combustíveis fósseis uma coisa do passado. Se falhar, o rosto vermelho não terá sido causado por uma queimadura do deserto.

Fonte: New Scientist/Info Online

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