sexta-feira, 25 de junho de 2010

Materias que Vem dos Programas Espaciais

SÃO PAULO - Muitas tecnologias desenvolvidas para o programa espacial são usadas aqui mesmo, na Terra.

Uma sonda espacial mergulha na atmosfera de Titã e pousa com segurança na superfície. A mais de um bilhão de quilômetros de distância, aqui na Terra, uma máquina enche um saco de batatas fritas. Georg Koppenwallner não achava que a maior lua de Saturno tinha muito em comum com o seu salgadinho favorito — pelo menos até receber um telefonema da Agência Espacial Europeia (ESA).

A Hyperschall Technologie Göttingen, empresa de Koppenwallner na Alemanha, faz experimentos em túneis de vento e calcula a aerodinâmica de veículos espaciais, incluindo os da ESA. Desta vez, a ESA tinha um pedido incomum: será que os cientistas e engenheiros da empresa poderiam sair da sua rotina diária para ajudar a encontrar uma forma de embalar batatas fritas mais rapidamente? A equipe de Koppenwallner atendeu prontamente ao pedido. Eles encontraram uma forma de preencher 50% mais sacos usando truques aerodinâmicos com pulsos de ar para acelerar a linha de produção das batatas fritas. Pode parecer estranho que a ESA esteja ajudando uma indústria tão definitivamente não-espacial. Mas, do ponto de vista econômico, faz bastante sentido. Com dezenas de bilhões de dólares gastos em pesquisas todos os anos, a ESA, a NASA e a agência espacial japonesa JAXA têm acesso a algumas das melhores instalações e tecnologias do mundo. É aí que entra Frank Salzgeber, diretor do escritório de transferência tecnológica da ESA em Noordwijk, na Holanda.

Esqueça as histórias mirabolantes sobre a NASA ter inventado o teflon para usar em escudos espaciais, o velcro para fixar itens em gravidade zero e o suco de fruta Tang para melhorar o sabor da água reprocessada. Todos eles são produtos que já existiam e que a NASA apenas popularizou. No entanto, muitas outras tecnologias da indústria espacial de fato vêm parar no nosso dia a dia. Esta é a história de como elas são trazidas do espaço.

Espremer limão

Articulado, confiante, Salzgeber incorpora um vendedor cuja função é promover os benefícios da tecnologia espacial. Armado com um vasto conhecimento do que está acontecendo nos laboratórios da ESA e uma visão afiada de onde a tecnologia poderia ser aplicada, ele e sua rede de “vendedores do espaço” viajam pela Europa apresentando empresas em busca de soluções tecnológicas a especialistas espaciais. A equipe de dez pessoas gerencia cerca de duas dúzias de transferências tecnológicas ao ano.

Muitos dos negócios que a equipe de Salzgeber propõe são inusitados. Os mais óbvios tendem a acontecer de qualquer maneira, o que deixa a equipe de vendas simplesmente com a tarefa de “espremer o limão até a última gota”. Mas é desses resíduos que muitas vezes saem os resultados mais impressionantes. Paul Vernon, que trabalha como corretor para a ESA no Science and Technology Facilities Council do Reino Unido, em Daresbury, teve seu grande momento cinco anos atrás, quando estava visitando um laboratório na Universidade Queen Mary de Londres. Ele teve sua revelação quando o engenheiro Ejaz Huq lhe mostrou alguns artefatos espaciais incomuns através de um microscópio. Mediante um aquecimento modesto de uma corrente elétrica, as pequenas vigas de plástico em camada dupla podiam dobrar o suficiente para controlar a posição exata de espelhos em satélites.

Pensando em potenciais negócios, Vernon Huq sugeriu que ele colocasse uma das vigas num líquido para ver o que acontecia. Para sua surpresa, eles descobriram que a taxa de flexão dependia da viscosidade do líquido e, mais ainda, que essa taxa poderia ser determinada a partir da leitura eletrônica da viga. “Meu pensamento foi: onde seria possível fazer dinheiro com medidores de viscosidade descartáveis?”, Vernon recorda. “E então pensei no mercado médico.”

Foi uma ideia sagaz.

Pacientes com risco de ataques cardíacos ou derrames cerebrais precisam ter a viscosidade de seu sangue verificada regularmente, a fi m de saber quando devem tomar drogas para afinar o sangue: se o sangue está muito grosso, pode coagular; se está muito fi no, o paciente pode sangrar incontrolavelmente. Estimulado por um mercado mundial de 1 bilhão de dólares para viscosímetros de sangue, Vernon criou a empresa Microvisk, que vai transformar as vigas espaciais em dispositivos portáteis para testes. Os aparelhos Microvisk ainda estão em desenvolvimento, mas testes clínicos já indicam que eles serão os mais precisos do mercado.

Se há uma tecnologia espacial que é mais explorada na Terra do que qualquer outra, provavelmente é o GPS. Além dos seus usos mais conhecidos, como o navegador por satélite do seu carro, a lista de aplicações é impressionante. Previsão de enchentes e monitoramento de resíduos perigosos são apenas algumas das áreas benefi ciadas pela tecnologia de posicionamento por satélite. Talvez a aplicação mais inusitada e divertida venha de um ex-técnico de suporte alemão, Andy Lurling. Nos fins de semana, Lurling gostava de ver a Fórmula 1 pela televisão com seus amigos e jogar games de corrida no computador. “Nós dissemos: ei, não seria ótimo se pudéssemos juntar as duas coisas”, lembra ele, “se pudéssemos correr contra os pilotos reais de F1 e não contra o computador?”

Lurling teve uma visão de como isso poderia funcionar. Os carros de F1 modernos são equipados com centenas de sensores que acumulam dados sobre os principais parâmetros, como aceleração e freio, e os enviam de volta aos boxes. Basicamente, esses sistemas de telemetria criam cópias virtuais dos carros, que poderiam ser transmitidas em tempo real para as máquinas dos espectadores via internet. A única bandeira vermelha era o parâmetro mais importante de todos: a posição dos carros. Apesar de cada carro ser equipado com rastreador GPS, em geral eles têm precisão de apenas 15 metros, o que seria inútil para jogos. Sem saída, Lurling pediu ajuda à equipe de Salzgeber na ESA. Ao mesmo tempo, a ESA estava promovendo uma competição para encontrar novas aplicações para o Galileu, futura alternativa europeia ao GPS, mais precisa que o sistema norte-americano. Em 2006, Lurling ganhou uma disputa regional e recebeu mais de 80 000 euros para desenvolver sua ideia.

GPS corrigido

Com pelo menos quatro anos pela frente até o lançamento do Galileu, o time de Salzgeber apontou a Lurling a tecnologia que poderia preencher a lacuna e corrigir algumas das falhas da atual navegação por satélite. Dispositivos GPS comuns calculam a própria localização pelo tempo que levam para receber sinais de vários satélites com órbitas conhecidas. No entanto, erros causados pelas flutuações atmosféricas perturbam a velocidade de sinal. Para contornar esta situação, serviços mundiais como o OmniStar estimam os erros em todos os satélites do GPS e enviam correções médias aos seus assinantes.

A nova empresa de Lurling agora assina o serviço da OmniStar. Salzgeber considera esta uma de suas melhores histórias de sucesso, já que a empresa recebeu pedidos de 20 000 jogadores ansiosos para experimentar a tecnologia. Em outubro, mais de 5 000 deles testaram uma versão beta do software numa corrida de GT e a equipe de Lurling descobriu que podia medir as posições dos carros com cerca de 10 centímetros de margem de erro (real-timeracing. com). Lurling está agora em negociações com grandes fabricantes de games e, fechados os contratos, pode não demorar muito para que jogadores de todo o mundo possam estar ao lado de Lewis Hamilton.

Do outro lado do Atlântico, a NASA está por trás de alguns negócios clássicos da indústria espacial. Entre os mais conhecidos está o aspirador de pó portátil Dustbuster, da Black & Decker. A NASA pediu à Black & Decker para projetar uma broca capaz de penetrar 3 metros na superfície lunar com baixo consumo de energia. Sua eficiência permitiu à empresa construir um aspirador portátil que funciona com pilhas.

Coração e espaço

Há também a história dos cirurgiões George Noon e do falecido Michael DeBakey do Baylor College of Medicine, no Texas. Em 1984, eles realizaram um transplante que salvou a vida de um paciente que havia sofrido um ataque cardíaco. Durante décadas DeBakey vinha desenvolvendo bombas de sangue artificiais para ajudar os corações fracos, e, junto com Noon, ele queria criar uma com design melhorado. Por acaso, o paciente que eles haviam salvado era o engenheiro de foguetes da NASA David Saucier.

Saucier tinha experiência com as bombas gigantes de combustível usadas para alimentar os motores de ônibus espaciais, e conhecia três engenheiros da NASA que poderiam ajudar. Ele os apresentou a DeBakey e Noon e eles começaram a trabalhar em uma bomba de “fluxo axial” do ônibus espacial. Essa bomba contém uma hélice em formato de parafuso selada em um tubo. Experimentos em versões iniciais destruíam as células sanguíneas que passavam pela bomba, mas depois de umas 50 tentativas eles criaram um design sufi - cientemente bom para iniciar testes em animais.

Pura imaginação

Se a bomba de DeBakey e Noon existisse quando Saucier teve seu ataque cardíaco, ele poderia tê-la usado para dar suporte ao seu coração em vez de recorrer ao transplante. (Embora o transplante tenha sido um sucesso, ele faleceu mais tarde, de câncer.) Mesmo assim, desde 2003 a bomba foi usada em mais de 400 pacientes cujos corações estavam falhando. Seus benefícios incluem ser muito confiável, uma vez que tem apenas uma parte móvel e nenhuma válvula, bem como fazer pouco ruído. Mais importante, seu pequeno tamanho significa que ela também pode ser implantada em crianças.

Neste caso, os cirurgiões tiveram a sorte de tropeçar no especialista certo, mas isso nem sempre ocorre. Muitas histórias de sucesso acontecem apenas na imaginação dos corretores de transferência de tecnologia da agência espacial, que têm a difícil tarefa de fazer a correspondência entre a solução oculta para os problemas de um cliente e o banco de tecnologias disponíveis. Embora existam sites, bancos de dados e publicações, os resultados muitas vezes vêm do conhecimento geral de um corretor.

Erro de sorte Michele Brekke, diretora de parcerias inovadoras do Johnson Space Center da Nasa, em Houston, Texas, pode citar muitos casos de novos negócios extraordinários. Ela explica, por exemplo, como a tecnologia utilizada para acoplagem espacial está permitindo que milhares de pessoas enxerguem sem óculos ou lentes de contato. Chamada Ladar, a tecnologia funciona de forma semelhante ao radar, calculando a distância de um objeto com base no tempo que leva para um impulso alcançá-lo e ser refletido de volta. A principal diferença é que os pulsos são de laser em vez de ondas de rádio. O Ladar é o que permite o encontro de naves com precisão milimétrica. Para aqueles com deficiência visual, entretanto, a característica fundamental é que ele pode enviar e receber pulsos milhares de vezes por segundo. Normalmente, quando os pacientes são submetidos a cirurgia corretiva de visão por laser, os cirurgiões usam câmeras de vídeo para monitorar a posição do olho para que o laser cirúrgico atinja o lugar certo da córnea. Mas os olhos de uma pessoa fazem movimentos não captáveis pelo vídeo, o que pode forçar os cirurgiões a cancelar o procedimento. O Ladar, por outro lado, pode mapear os movimentos dos olhos com tamanha velocidade que os movimentos rápidos não importam.

Com tantos novos negócios de valor vindo da indústria espacial, os governos podem se questionar sobre as implicações mais amplas nos orçamentos das agências. Os estados membros da ESA estão firmes diante da recessão global e pedem um aumento de 800 milhões de euros no orçamento para o próximo ano. Mas a situação está mais difícil para a NASA. A proporção do orçamento federal gasta com a agência americana caiu desde os anos 90 e o Congresso ainda tem de decidir se vai conceder o dinheiro extra necessário para um regresso à exploração do espaço em voos tripulados.

Ironicamente, o negócio que melhor demonstra a importância da indústria espacial não estava em nenhum plano de missão original. É uma tecnologia que permite aos médicos procurar o tênue contorno de tumores na mamografia, o que lhes permite combater o câncer de mama sem recorrer ao bisturi. Ela está poupando milhões de mulheres de dor, cicatrizes e exposição à radiação, além de reduzir os gastos com saúde dos Estados Unidos em 1 bilhão de dólares ao ano. Principalmente, está salvando vidas. Então, de onde ela veio?

Simplificando, ela veio de um erro. Poucas semanas após o lançamento do telescópio espacial Hubble, em abril de 1990, os engenheiros da NASA ficaram atônitos ao descobrir que um espelho defeituoso estava borrando as imagens retransmitidas. A solução exigiria introduzir óptica corretiva no trajeto de luz do telescópio — os óculos do Hubble, como ficaram conhecidos. Mas os astronautas não seriam capazes de encaixá-los antes de três anos. Impacientes, os cientistas da NASA procuraram maneiras mais imediatas de corrigir as imagens. Logo eles se tornaram especialistas em manipulação de imagens digitais, criando um software para aumentar a nitidez. Desde 1994, esse mesmo software é usado pela Lorad Corporation em Danbury, Connecticut, em exames para detectar o câncer de mama.

Mesmo quando as missões falham a milhões de quilômetros de distância, nas escuras profundezas do espaço, elas podem ter sucesso além das nossas melhores expectativas aqui mesmo na Terra.

Fonte: New Scientist/Info Online

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